A promulgação da Lei 13.786/2018, conhecida como Lei dos Distratos, representou um marco na regulamentação das relações contratuais no setor imobiliário brasileiro. Com o objetivo de estabelecer critérios claros para a resolução de contratos de compra e venda de imóveis, a lei trouxe inovações significativas, como a definição de limites para cláusulas penais e a possibilidade de devoluções parceladas, ou também a devolução em até 30 dias após a expedição do habite-se em casos de incorporações. Apesar de sua relevância, quase sete anos após sua entrada em vigor, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem demonstrado uma preocupante resistência em aplicar seus preceitos, resultando em um cenário de insegurança jurídica que afeta tanto consumidores quanto empresas do setor.

Esse contexto é ainda mais crítico quando se considera o período de crise do mercado imobiliário, frequentemente denominado "crise dos distratos", que viu os percentuais de distratos no Brasil permanecerem na casa de 40% ao mês. Durante esse tempo, muitas incorporadoras e loteadoras enfrentaram dificuldades financeiras, levando a uma série de pedidos de recuperação judicial. A necessidade de um marco regulatório que protegesse tanto os consumidores quanto as empresas do setor se tornou evidente.

Recentemente, o julgamento do REsp nº 2106548/SP pela Terceira Turma do STJ, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, trouxe à tona a controvérsia sobre a aplicação da Lei dos Distratos em uma ação de rescisão contratual envolvendo lotes. O caso em questão envolvia um adquirente que buscava a rescisão do contrato alegando dificuldades financeiras para cumprir com os pagamentos. Ao decidir, a Ministra Andrighi defendeu que a relação entre o comprador e a loteadora se enquadrava no Código de Defesa do Consumidor, argumentando que a aplicação dos percentuais de retenção previstos na Lei dos Distratos seria excessiva e, portanto, não se aplicariam no caso.

É crucial destacar que essa decisão reflete apenas a posição da Terceira Turma e não a opinião do STJ como um todo. O voto da Ministra não apenas ignorou os avanços da nova legislação, mas também invocou precedentes e súmulas anteriores à vigência da Lei dos Distratos, criando um cenário de retrocesso. Essa postura gerou críticas, especialmente no que diz respeito à sua interpretação do Código de Defesa do Consumidor como limitador da Lei dos Distratos. O entendimento da Ministra sugere um "conflito de normas" que, na verdade, pode ser visto como uma resistência à modernização da legislação.

Em contrapartida, o voto divergente do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva trouxe à tona argumentos relevantes. O Ministro destacou que a Lei dos Distratos foi criada para conferir maior segurança jurídica tanto aos consumidores quanto às empresas do mercado imobiliário, estabelecendo critérios objetivos para a restituição de valores em casos de rescisão contratual. Cueva argumentou que a cláusula penal, quando ajustada conforme a nova legislação, não poderia ser considerada abusiva, pois respeita os limites impostos pela lei. Para ele, a aplicação da Lei dos Distratos visava reduzir a judicialização de conflitos, oferecendo previsibilidade às partes envolvidas.

O contraste entre os votos evidencia uma divisão significativa na interpretação da legislação. Enquanto o voto da Ministra Andrighi sugere uma preferência por interpretações conservadoras, ultrapassadas e obsoletas, que desconsideram a inovação trazida pela Lei dos Distratos, o voto do Ministro Cueva aponta para a necessidade de aplicar a nova legislação de forma a garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações contratuais no setor imobiliário.

A decisão da Terceira Turma, que se inclinou para a interpretação da Ministra Andrighi, levanta preocupações sobre a segurança jurídica e a coerência sistêmica da jurisprudência do STJ. Ao promover uma interpretação que ignora a eficácia da Lei dos Distratos, o tribunal não apenas fragiliza a confiança dos agentes econômicos, mas também perpetua a insegurança que a própria legislação buscou eliminar.

Em um desdobramento importante, a Quarta Turma do STJ, sob a relatoria da Ministra Isabel Gallotti, julgou o REsp nº 2104086, reafirmando a aplicação da Lei dos Distratos. A decisão permitiu a retenção de valores devidos ao vendedor, incluindo a taxa de ocupação e a cláusula penal, mesmo em contratos de venda de lotes não edificados. O entendimento foi de que, após a entrada em vigor da Lei dos Distratos, era legal aplicar esses descontos nos casos de rescisão, demonstrando um alinhamento com as disposições estabelecidas pela legislação. Essa decisão contrasta com a resistência observada na Terceira Turma e ressalta a necessidade de uma interpretação coesa e uniforme que respeite a nova legislação.

Portanto, é fundamental que o STJ reavalie sua abordagem em relação à Lei 13.786/2018 e busque uma interpretação que respeite tanto a letra quanto o espírito da legislação. A segurança jurídica deve ser uma prioridade, e a aplicação das normas deve estar alinhada com os avanços legislativos que visam proteger tanto consumidores quanto fornecedores de imóveis. A resistência em aplicar a nova legislação não apenas compromete a confiança dos consumidores, mas também o desenvolvimento de um mercado imobiliário saudável e dinâmico.

É legítimo que haja divergência jurisprudencial e controle de abusos pontuais, mas não se pode admitir que a aplicação da lei seja afastada por objeções subjetivas ao seu conteúdo normativo. O STJ deve reafirmar seu papel institucional e garantir a plena eficácia da legislação federal, em respeito à legalidade, à segurança jurídica e à estabilidade das relações contratuais no setor imobiliário.





Diego Amaral é advogado, sócio do Dias & Amaral Advogados, ex-vice-presidente da Escola Superior de Advocacia - ESA/GO, ex-diretor da Comissão Nacional de Direito Imobiliário da OAB, Conselheiro Seccional e Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB/GO, membro dos Conselhos Jurídicos da CBIC, Ademi-GO e Ademi-RV, autor e palestrante no âmbito dos Negócios Imobiliários.